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O amor nos tempos do imediato: a história da Mulher-esqueleto

Este texto foi publicado originalmente na Revista Inspira, edição #3, outubro de 2019.

Colagem com a obra de René Magritte, Os Amantes (1928)


Por que os relacionamentos modernos duram tão pouco? Por que é tão difícil encontrar alguém? A escritora e psicóloga junguiana Clarissa Pinkola Estés nos dá a receita para um relacionamento duradouro e profundo entre duas almas. Já adiantamos: você tem que parar fugir dos esqueletos que guardou no fundo do armário.

 

Era uma vez, em uma pracinha de bairro não muito distante. Um casal trocava carinhos e beijinhos de amor, enquanto uma senhora e sua neta passavam pelo caminho. A senhora perguntou há quanto tempo o casal estava junto. Eles responderam, com a ternura do momento, que havia alguns meses, ao que ela rebateu, voltando-se para a neta: “Está vendo? É por isso! Espere passar alguns anos para você ver”. E lançado o mau agouro, se afastaram para sempre!


Esse não é um conto de fadas, e nem pretende ser. Mas você já parou para pensar em como rejeitamos culturalmente a possibilidade de um “final feliz”? A provocação da mulher amarga da historinha é um retrato expressivo das crenças impregnadas em nossa cultura a respeito do amor.


O relacionamento piora com o tempo? Toda união está fadada ao fracasso e ao fim? O que essa fala da senhora provoca na visão do amor que ela oferece a sua neta? E, ainda, essa crença de que o amor tem data de validade nos leva a algum lugar que vale a pena?


Com o tempo, entrei em contato com diversas leituras que me entregaram duas respostas, as mesmas que tenho aprendido com a própria vida.


A primeira coisa que devemos ter em mente é que o amor não tem data de validade para quem pode e sabe reaproveitá-lo. É como aquela fruta já madura que ainda pode virar um bolo gostoso! Ou como o mel: que pode mudar de cor, cristalizar, e ainda assim conseguir adoçar a sua vida. E assim ao infinito!


A máxima de Lavoisier se aplica perfeitamente aqui: “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. E se aplica perfeitamente porque nós, assim como nossos corpos, mentes e sentimentos, não estamos separados da natureza.


A psicanalista junguiana Clarissa Pinkola Estés, autora do best-seller e hino de várias gerações de mulheres “Mulheres que correm com os lobos”, chama esse processo de natureza da vida-morte-vida. “A natureza da vida-morte-vida é um ciclo de animação, desenvolvimento, declínio e morte que sempre se faz seguir de uma reanimação. Esse ciclo afeta toda a vida física e todas as facetas da vida psicológica. Tudo – o Sol, as estrelas novas e a Lua, assim como as questões dos seres humanos e as das menores criaturas, como células e átomos – possui essa característica de agitação, hesitação e novamente agitação”, explica a autora.


Há um capítulo de seu livro que traz uma história do povo inuit, a história da Mulher-esqueleto. Uma história de caça a respeito do amor, que vale muito a leitura. Esquisito isso? Bem, Clarissa explica que para os povos do norte não existe uma visão muito romântica do amor. Eles enxergam o amor entre duas pessoas como a ponte para um outro mundo, o mundo da alma, através do qual “os poderes que existem” se tornam conhecidos aos dois indivíduos. Dessa forma, amar é um treinamento, uma tarefa de dissecação que demanda o amadurecimento das almas, e portanto é uma tarefa para pessoas providas de uma natureza profunda e selvagem.


Para a psicanalista, todo relacionamento duradouro tem algo em comum, o fato de haver um terceiro parceiro na relação: a tal da mulher-esqueleto. A mulher-esqueleto é um avatar da natureza vida-morte-vida, uma faceta da morte. Mas não deve ser encarada como um Mal encarnado, e sim como uma Deusa da transformação. De acordo com Clarissa, não devemos temê-la, “pois, quando se perdeu a fé na transformação, os ciclos naturais de progresso e de desgaste também são temidos”.


É preciso compreender o movimento, o espírito da transmutação que permeia tudo e todo. É preciso abraçar a Mulher-esqueleto. Entender as trocas de pele de cada momento da relação. Compreender isso, junto com a análise de se há amor e respeito, faz com que o relacionamento dure, na certeza de que alguns aspectos serão constantemente modificados, repaginados. Entender isso é vital para relações de qualquer natureza.


No entanto, tememos a mudança!


A segunda resposta que encontrei para o fato de os relacionamentos estarem fadados ao fracasso vem em forma de análises sociológicas.


Acontece que nessa sociedade de consumo, o reinventar, reciclar, reutilizar e preservar se tornaram práticas ultrapassadas. E isso se reflete na maneira como nos relacionamos. A pesquisadora Eva Illouz, em seu livro O amor nos tempos do capitalismo, reflete que “repertórios culturais baseados no mercado moldam e impregnam as relações interpessoais e afetivas”.


Em outras palavras, nos relacionamos com as pessoas assim como nos relacionamos com produtos à venda em uma gôndola de supermercado. Se achamos legal a embalagem, útil o conceito, compramos. Usamos algumas vezes e logo o descartamos, prontos para conhecer uma nova marca ou produto que possa solucionar aquele mesmo problema.


Para quê insistir em um produto que não atende a 100% das minhas queixas? Argumento perfeito, né? Seria. Se você quisesse se relacionar com produtos de limpeza e utensílios domésticos.


Estamos falando de humanos. Acontece que fomos educados a acreditar em uma versão distorcida do amor, amparada em contos de fada surreais de Walt Disney.


Nem mesmo nos contos originais dos irmãos Grimm o amor era tão idealizado, mas na versão que consumimos desde a infância existem o príncipe e a princesa encantados. E algumas pessoas passam a vida esperando que essa pessoa “encantada” se materialize em algum instante da sua vida. Descartando todas as que aparecem antes com qualquer “defeito de fábrica” por mais mínimo que seja.


Como seria encantada uma pessoa que não pode preservar sua identidade e espontaneidade em detrimento do que seu parceiro idealiza dela? Ninguém pode ter a aura do encanto enquanto insistir em se encaixar nos moldes criados pelo outro. Por outro lado, não conseguiremos ver encanto em alguém enquanto perseguirmos um padrão que só existe em nossas idealizações.


O filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Žižek diz sempre que o amor verdadeiro é reconhecer a imperfeição. Aceitar a pessoa com todas as suas falhas. E não é a mais pura verdade?


Enquanto insistirmos em usar o véu de Maya, o véu da ilusão, estaremos longe de atingir a real maturidade e felicidade dentro de uma relação. Pois segundo Žižek é o amor que nos conecta à realidade. E a realidade as vezes vai doer. Quem ama é capaz de dizer ao amado o que pensa, dizer o que dói, cutucar a ferida, se abrir para a verdade e ainda assim, se há verdadeiro amor e respeito, tudo há de continuar bem.


Como afirma Clarissa Pinkola Estés, “o milagre que estamos procurando leva tempo” e é preciso ultrapassar a monstruosidade submersa do outro (seus demônios escondidos) para que possamos construir um amor real, espontâneo e duradouro com base em respeito e amor em seu mais puro significado.


Aquele mesmo casal que iniciou o texto, mesmo depois de anos, compartilha o afago um com o outro nos bancos das praças. Qual seria, então, a exclamação da senhora para a neta ao saber que anos se passaram e a demonstração de amor e carinho continuaram?



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