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O sono e os mistérios dos sonhos

Atualizado: 1 de ago. de 2021

Este texto foi publicado originalmente na Revista Inspira, edição #5, outubro de 2020.


Foto: Dakota Corbin/ Unsplash


Passamos 1/3 da nossa vida dormindo. Ainda assim o momento do sono é cercado por mistérios. Ao lado de outros impulsos básicos da vida, como comer e beber, o sono também é vital. Das pirâmides do Egito à canção Yesterday, dos Beatles, de premonição à percepção dos restos diurnos: o ato de dormir modificou a civilização em que vivemos. Leia em nosso Dossiê do sono e esclareça muitos dos mistérios do nosso tempo de dormir.

 

Depois de acordar no meio da madrugada, numa série de noites mal dormidas, peguei o celular e a partir daí não consegui mais dormir. No decorrer do dia, meu humor não estava dos melhores; o cansaço mental e no corpo também era aparente. Para combater todo esse descompasso no meu ritmo, a solução mais comum: algumas xícaras de café.


Faço parte dos 73 milhões de brasileiros que têm dificuldades para dormir. No País, 72% da população sofre com alguma doença relacionada ao sono, segundo estudo da Royal Philips de 2018. O que tem feito a maioria das pessoas não pregarem os olhos são questões financeiras e o uso de tecnologia antes de deitar. É relativamente comum especialistas alertarem que há uma epidemia de privação de sono nos países industrializados.


Uma pesquisa mais recente sobre a qualidade do sono durante a pandemia, realizada pelo Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul (InsCer), revelou que mais de 70% dos brasileiros adultos tiveram alterações para iniciar ou para manter o sono. Preocupações emocionais e medo são umas das causas que tiraram o sono dos brasileiros.


Por que estar insone é cada vez mais comum?


Antes de tudo, precisamos entender o que é o sono.



O relógio biológico

Quando cai a noite, naturalmente associamos à hora de dormir. Não é uma coincidência. É nesse período que a liberação de melatonina, o hormônio do sono, chega ao ápice, por ser estimulada quando não há incidência de luz. É o nosso ritmo circadiano que marca quando iremos sentir sono ou quando estaremos em vigília, acordados.


Esse é o nosso relógio biológico, com duração de 24 horas e 15 minutos, para determinar o ciclo de um dia – daí o nome circadiano, do latim circa (cerca de) e diem (dia). Mas o relógio interno não marca o mesmo horário para todos. Isso explica por que algumas pessoas dormem mais tarde que outras.


Como seres sociais que somos, essa diferença foi estratégica durante o passar dos milênios. Se todos fossem dormir no mesmo horário, o grupo ficaria vulnerável. Então, enquanto uma parte das pessoas estava dormindo, a outra estava em vigília, e vice-versa.


Os nossos antepassados distantes tinham o sono polifásico ou bifásico; era muito incomum o sono monofásico, que é o costume de ter apenas um grande período sono, com duração até o início da manhã.


Podemos ilustrar essa perspectiva com uma passagem do romance de cavalaria do começo do século XVII. No início do capítulo 68 do livro Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, é mostrado o hábito incomum de Sancho Pança de dormir um único sono até o início da manhã: “Satisfaz Dom Quixote as reclamações da natureza, dormindo o primeiro sono sem dar lugar ao segundo, bem às avessas de Sancho, que nunca teve segundo sono, porque dormia desde o cair da noite até o romper da manhã, fato em que mostravam a sua boa compleição e poucos cuidados”.


Ainda hoje em dia é comum algumas localidades da Espanha e da Itália fecharem as portas dos estabelecimentos para a tradicional sesta da tarde.

Duas transformações sociais influenciaram na mudança no ritmo circadiano: a industrialização e as luzes artificiais. Com o avanço da industrialização, o tempo da manhã e da tarde foram ocupados pela hora do trabalho, o que empurrou o sono para apenas uma parte do dia.


O outro fator que desregula o ritmo circadiano teve início a partir do século XIX com a chegada da luz elétrica. As pessoas começaram a ir dormir mais tarde, atrasando assim a liberação de melatonina – e isso desregula o nosso relógio biológico.



Só mais uma xícara de café

E se tentarmos forçar esse ciclo circadiano ao nos mantermos acordados?


Aí entra em ação um neurotransmissor chamado adenosina, que faz uma pressão do sono e aumenta o desejo de dormir. “Quanto mais tempo você passar acordado, mais adenosina será acumulada. Pense na adenosina como um barômetro químico que registra continuamente o tempo transcorrido desde que você acordou esta manhã”, escreve o cientista Matthew Walker em seu livro Por que dormimos.


Para driblar a enxurrada de neurotransmissores que nos deixa sonolentos, geralmente, recorremos à cafeína. O que essa substância faz é bloquear os receptores de adenosina e, por consequência, adiar o sinal de sonolência. Esse engano causado no cérebro começa a fazer efeito trinta minutos após a ingestão da cafeína. O problema é na chamada “meia-vida” da substância, que é o tempo que o corpo leva para remover 50% da concentração no organismo. No caso da cafeína, essa meia-vida pode ser de até oito horas. Ou seja, quem toma um cafezinho no final da tarde, por volta das 18h, ainda tem metade da substância estimulante circulando no organismo às 2h da madrugada.


Após a eliminação completa da cafeína, a adenosina continua nos empurrando para a cama. Só que agora sua concentração está ainda maior pela contínua restrição do sono. É nesse momento que o efeito rebote mais forte de sonolência ocorre, sobrando duas alternativas: mais cafeína ou ir dormir.


A eficácia da eliminação da cafeína do organismo, feita por uma enzima do fígado, também vai se perdendo com o envelhecimento. Isso faz com que sejamos mais sensíveis às mesmas quantidades de doses que tomávamos na juventude. Esse débito é pago com cada vez mais noites mal dormidas.


A estrutura do sono

Quando dormimos, passamos por dois ciclos de sono que se repetem durante toda a noite. Eles se baseiam na presença ou na ausência da movimentação dos olhos: o sono REM (rapid eye movement – em português "movimento rápido dos olhos") e o sono NREM (Não-REM) – esse último dividido em outros quatro subestágios sem a movimentação dos olhos. Os dois ciclos são importantes para a nossa existência.


Dependendo do tempo de sono, há a prevalência de uma dessas fases. Se dividíssemos o sono pela metade, a primeira parte ficaria, sobretudo, com o sono NREM; já a segunda parte, com a prevalência do sono REM. A cada 90 minutos, esse ciclo passa de um estágio para o outro.


Apesar de não ter consenso entre os cientistas sobre essa alternância entre as fases do sono, Matthew Walker coloca em questão a capacidade da formulação de memória no cérebro durante o processo: “A interação irregular para cá e para lá entre o sono NREM e o sono REM é necessária para remodelar e atualizar nossos circuitos neurais à noite e, ao fazê-lo, administra o espaço de armazenamento finito no cérebro”, defende.


Já podemos notar uma das funções desses dois estágios: a manutenção de memórias. Quando entramos no sono NREM, é feita uma espécie de triagem das informações coletadas ao longo do dia, separando o que é importante do que não é importante e que será varrido para o esquecimento. É na segunda metade do tempo em que estamos dormindo que essas conexões são fortalecidas, durante a prevalência do sono REM.


Caso você decida acordar duas horas antes do total necessário, além de perder 25% do sono, um percentual muito maior será perdido da função do REM, de 60% a 90%, tendo em vista que esse estágio tem prevalência durante as últimas horas de sono.


Foi durante o estágio REM que os nossos ancestrais desenvolveram um dos aspectos necessários para edificarem a sociedade: o equilíbrio emocional. Por isso, quando vemos uma pessoa que está mal-humorada falar que não teve uma boa noite de sono, isso faz sentido – pelo menos biologicamente. “A partir desse QI emocional melhorado pelo sono REM emergiu uma forma nova e muito mais sofisticada de socioecologia hominídea através de vastas coletividades, algo que permitiu a criação de grandes comunidades de seres humanos, emocionalmente sagazes, estáveis, muito interligados e intensamente sociais”, defende Walker.


Outro aspecto do estágio REM é a prevalência do sono profundo e dos sonhos. É nesse estágio que o cérebro passa por um turbilhão de movimentação, conectando as informações adquiridas durante o dia com as informações já armazenadas, das formas mais surpreendentes possíveis – às vezes até mesmo assustadoras, em forma de pesadelo. Nesse caso, se sonhamos com alguém nos perseguindo, a reatividade motora para correr ou para lutar fica latente. Podemos acordar ofegantes no meio de um pesadelo, mas nunca saímos correndo, justamente porque a nossa natureza biológica foi sagaz em paralisar as atividades motoras do corpo para sonharmos com segurança.


Curiosamente, todas as espécies que já puderam ser estudadas sobre o sono, dormem. O sono é uma necessidade universal. Até mesmo alguns peixes, como os tubarões, que nunca fecham os olhos, entram num estágio equivalente ao sono. O fato de não fechar os olhos, na verdade, é pela falta de pálpebras. O que nos diferencia dos outros animais em questão de sono é, justamente, que os humanos têm mais estágios do sono REM – talvez essa seja uma das explicações para o desenvolvimento social da nossa espécie.

“O prejuízo físico e mental causado por uma noite de sono ruim é muito maior do que os causados por uma equivalente falta de alimento ou de exercício” - Matthew Walker


O melhor remédio

A expressão “dorme, que passa” é sinônimo de cura para todo e qualquer mal – às vezes, dito, é claro, de forma irônica. Fora a generalização de cura de todos os males, esse ditado popular carrega em si uma sabedoria: dormir, realmente, é um excelente remédio. E isso é comprovado cientificamente.


O sono faz parte da tríade da boa saúde junto com a alimentação e a prática de exercícios físicos. E uma noite de sono ruim faz com que desequilibremos toda essa estrutura. A privação de sono faz com que você coma mais, por desregular o hormônio que faz sentir fome e refrear o hormônio da saciedade. Portanto, deve entrar na conta para a saúde: alinhado a uma dieta para emagrecer ou controlar o peso, dormir as horas suficientes deve estar no topo da lista de prioridades. “O prejuízo físico e mental causado por uma noite de sono ruim é muito maior do que os causados por uma equivalente falta de alimento ou de exercício”, destaca Walker.


Outros riscos à saúde vê­m na esteira da restrição do sono. “O hábito de dormir menos de seis ou sete horas por noite abala o sistema imunológico, mais do que duplicando o risco de câncer”, alerta Walker. Também entra nessa conta o aumento do risco desenvolver Alzheimer, diabetes e problemas cardíacos.


Em contrapartida, as boas noites de sono são beneficiadas até pelos sonhos. Quando sonhamos ocorre “um consolador banho neuroquímico que apazigua lembranças penosas e um espaço de realidade virtual em que o cérebro mescla conhecimento presente e passado, inspirando a criatividade”, escreve Walker.

O remédio pelo sono de qualidade beneficia todo o corpo: auxilia no fortalecimento do sistema imunológico, criando uma égide contra doenças como o câncer; orquestra a regulação da insulina e da glicose; regula o apetite e o ganho de massa muscular; favorece o sistema cardiovascular e regulariza a pressão arterial; assim como protege e fortalece o cérebro. Todas essas benesses são equilibradas enquanto dormimos.



Mais sono de qualidade, mais longevidade

Podemos começar pela inversão dessa afirmativa: quanto menos sono de qualidade, menos longevidade. Foi isso que provou um estudo da Universidade de Estocolmo, na Suécia. Ao examinarem mais 35 mil adultos de até 65 anos de idade, a pesquisa apontou um dado que acende o sinal de alerta: aqueles que dormem apenas cinco horas ou menos por noite têm uma taxa de mortalidade 65% maior em comparação com aqueles que dormem mais horas.


No entanto, a pesquisa também mostrou como reverter esse percentual: dormir mais nos finais de semana pode equilibrar essa conta.

Podemos trazer outra pesquisa que associa os aspectos do sono e a longevidade. Países da Europa Meridional preservam o hábito de dormirem o sono bifásico – o segundo sono de menor duração, a chamada sesta. É comum ainda existirem estabelecimentos na Itália e na Espanha fechados durante a tarde. Após o começo do século XXI, houve uma pressão na Grécia para abandonar o hábito da sesta. Sendo uma mudança radical nos hábitos dos gregos, uma equipe de pesquisadores da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard acompanhou as consequências na saúde em mais de 23 mil adultos, com foco no sistema cardiovascular.

“Nenhum dos indivíduos analisados tinha um histórico de doença cardíaca ou derrame cerebral no início do estudo, o que indica a ausência de enfermidade cardiovascular. No entanto, os que abandonaram a prática das sestas regulares passaram a sofrer um risco 37% maior de morte por doença cardíaca ao longo do período de seis anos, comparados aos que mantiveram as sonecas regulares durante o dia. O efeito foi especialmente forte nos operários, entre os quais o risco de mortalidade resultante de não fazer sestas aumentou bem mais de 60%”, comenta Walker.


“Sem o sonho, não teríamos achado motivo para uma divisão do mundo” - Friedrich Nietzsche.

Será que estou dormindo o suficiente?

Caso você tenha o sono monofásico, como a grande maioria das pessoas em países industrializados, os especialistas chegaram ao uníssono de aconselhar as habituais oito horas de sono bem dormidas, podendo variar para um pouco a mais ou para um pouco a menos.


As oitos horas diárias de sono não são um mito, mas existem outras crenças ligadas ao sono que estão longe da verdade. Uma delas é achar que idosos precisam de menos tempo de sono, comparados com alguém mais jovem. O que acontece é que com o avançar da idade as pessoas são menos capazes de gerar um sono de qualidade. E isso, como já observamos anteriormente, tem resultados não tão bons. “Quanto mais baixa é a eficiência do sono de uma pessoa mais velha, mais elevado é seu risco de mortalidade, pior sua saúde física, maior a probabilidade de sofrer de depressão, menos energia ela relata e mais baixa sua função cognitiva, tipificada por esquecimento”, salienta Walker.


Se mesmo após dormir as horas aconselhadas você continua a desconfiar que não está tendo um sono de qualidade, duas perguntas levantadas por Matthew Walker podem ser feitas. É claro que elas não têm valor conclusivo nem descartam uma avaliação médica, mas, pelo contrário, podem servir de termômetro para buscar a ajuda de um especialista.


A primeira pergunta a ser feita é: após acordar, você conseguiria voltar a dormir no final da manhã? Já a segunda pergunta é: você consegue funcionar perfeitamente sem tomar cafeína antes do meio dia?


Se a resposta for “sim”, para a primeira pergunta, e “não”, para a segunda pergunta, pode indicar que está faltando qualidade ou quantidade de sono, bem como aponta que você deve estar se automedicando para a privação de sono. Isso gera um acúmulo de adenosina, aquele neurotransmissor que falamos acima, que é causa a pressão do sono. Como Walker defende, se esse ciclo de privação de sono continuar, temos mais desse neurotransmissor circulando no dia seguinte. O processo é cumulativo, o que pode resultar numa fadiga crônica.


Mas se quisermos ter uma noite de sono mais eficiente, alguns passos podem ser tomados. Veja no nosso box ao final da matéria como fazer a higiene do sono com 12 dicas para dormir melhor.


O teatro dos espíritos

Ao acordarmos de um sonho perturbador, provavelmente, um reboliço de emoções vem à tona. Essa espécie de teatro arcaico, que geralmente não podemos controlar, surpreende pela verossimilhança. Mas logo nos acalmamos: “era apenas um sonho”.


Imagine agora o sonho de nossos ancestrais distantes. O que pode dizer muito sobre nós, ainda hoje, já que o Homo sapiens continua anatomicamente semelhante mesmo após 315 mil anos do seu aparecimento. Possivelmente, o enredo onírico de nossos antepassados deveria ser repleto de coisas que os cercavam no ambiente, como pedras, fogo e animais, bem como as tensões do dia, ligadas ao risco de o caçador virar caça.


Foi em algum momento do Paleolítico superior que surgiu uma divisão de mundos: o mundo físico e o mundo da alma. Essa ruptura entre realidades, provavelmente, se deve aos sonhos. Foi quando o sonhador se deparou pela primeira vez com pessoas que não estavam próximas ou que já haviam morrido. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche escreveu: “Sem o sonho, não teríamos achado motivo para uma divisão do mundo”.


Essa singular percepção desembocou em inúmeras representações que ainda estão bem vivas em nossa sociedade: sepulturas, zigurates, pirâmides – com corpos enterrados repletos de adereços, a partir do florescer da crença de que a vida continua após a morte física. O sonho era a prova da continuação da vida e também seria um portal entre os vivos e os mortos. “Enterros rituais marcam o rompimento definitivo da cultura humana com o funcionamento mental de outros animais”, comenta o neurocientista Sidarta Ribeiro, no livro O oráculo da noite.


Além das representações da morte gravadas em pedras, ainda perduram as que foram propagadas na mentalidade humana. A mitologia é um dos exemplos dessa elaboração humana na tentativa de explicar os sonhos.


O sonho tem posição de destaque em algumas culturas. Para os povos védicos, na índia, o deus hindu Vishnu é representado reclinado enquanto “sonha o Universo”. A realidade é um sonho – há interconexão entre o mundo da matéria e do mundo dos espíritos.


Muitas são as culturas que colocam o sonho em posição de destaque, como um lugar que habita dois mundos. Nos mitos védicos, a nossa realidade é um sonho do deus Vishnu.


Já os gregos mobilizam alguns deuses do seu panteão para explicar o sono e o sonho. Hipnos é o deus grego do sono, irmão de Tânatos, o deus da morte – por isso, uma certa proximidade entre estar dormindo e morrer. As matérias oníricas são concebidas por Morfeu. Os Oneiros trazem a mensagem para o sonhador: se eles passarem pelo portão de chifres, geram sonhos proféticos de origem divina; já se eles cruzarem o portão de marfim, os sonhos são enganadores. Isso aponta para crença oracular e divinatória dos sonhos, que atravessa os milênios até os nossos dias.



O poder oracular do sonho

Ao longo da história da civilização, os sonhos ganharam destaque na vida cotidiana dos nossos ancestrais. Existem vários registros históricos da importância dada aos sonhos e de sua influência nas questões sociais. Dependendo da cultura, o papel de fazer a ponte onírica entre o mundo real e o mundo dos espíritos era especializado na figura de xamãs. Além de receberem o sonho, também tinham a técnica para interpretá-los.

“A obtenção em sonho de autorização divina para justificar atos na realidade perpassa todo o nosso passado histórico. O caráter divinatório do sonho está presente nos principais textos remanescentes da Idade do Bronze (entre 5 mil e 3 mil anos atrás), como o Livro dos mortos egípcio e a Epopeia de Gilgamesh suméria. Além disso, está fartamente presente na Ilíada, na Odisseia, na Bíblia e no Corão”, exemplifica Ribeiro.


Na Roma Antiga, por exemplo, a influência onírica na sociedade chegou a patamares nunca antes vistos. A crença na comunicação com os deuses por meio dos sonhos logo passou a ser utilizada na política romana. A origem divina do primeiro imperador romano Otávio Augusto foi revelada pelo sonho de sua mãe Ácia com o deus Apolo, que aparecia em forma de serpente. O pai de Otávio Augusto também teve um sonho revelador: viu que o sol nascia do ventre da esposa – um presságio para o nascimento de um novo soberano.


Já para os egípcios, o declínio do culto aos deuses e à crença nos sonhos foi concomitante ao surgimento da escrita. As palavras gravadas perpetuariam as mensagens sagradas, não sendo mais necessário entrar no transe dos sonhos para ter contato com os deuses. “Nos textos egípcios e mesopotâmicos, o relato da morte de deuses ocorre desde o início do registro escrito, mas a reclamação de que os deuses teriam se calado só se tornou prevalente por volta de 1200 a 800 a.C. Foi um período de enormes crises sociais, econômicas e ambientais, com explosão populacional, migrações, guerras, fomes, pestes, secas e outros desastres naturais, que levaram ao colapso de cidades e impérios”, observa Ribeiro.

Em algumas localidades da Europa, o caráter divinatório dos sonhos afastou-se da esfera pública a partir da formação dos Estados nacionais europeus. De blasfêmia, aos olhos da Igreja Católica, o mistério dos sonhos foi enxotado à irrelevância, a partir do racionalismo do século XVIII, antro da ciência moderna e do capitalismo.


Alguns personagens históricos, no entanto, já isolavam o sonho do caráter místico. O filósofo grego Aristóteles, mesmo nascido numa cultura que vinculava os sonhos aos deuses, rejeitou tal ideia, transferindo a causa dos sonhos para uma origem mais biológica. Para o filósofo grego, os conteúdos oníricos eram formados a partir das experiências do tempo em vigília. Sigmund Freud, mais de dois mil anos depois, iria avançar com a classificação do que são os “restos diurnos” na composição dos sonhos.

A via régia para o inconsciente

Como vimos, o significado oracular dos sonhos está presente nas sociedades há milênios, mesmo com os seus altos e baixos ao longo da história. Ainda hoje acordamos com a sensação de “o que será que esse sonho quer dizer?”.

Em meio às descobertas para a fundação da Psicanálise, o neurologista austríaco Sigmund Freud também se fez essas perguntas após sonhos de luto decorrentes da morte de seu pai. Esse processo de “autoanálise” teve papel basilar na elaboração do livro A Interpretação dos Sonhos (1900). As proposições de Freud acerca dos sonhos foram revolucionárias frente às teorias da época. É como se Freud falasse: “Os sonhos querem dizer algo, sim. Mas não é sobre o que se falou até agora”. A começar pela orientação da origem dos sonhos, ao direcionar a mente como fonte de produção – o que hoje parece algo quase “comum”, foi um raio epistemológico à época.


"O sonho é o intermediário entre o mundo dos nossos sentimentos recônditos e aqueles submetidos à nossa razão: graças a ele podemos saber muita coisa que nos recusamos a saber no estado de vigília” - Stefan Zweig

Em vez de vaticinar o futuro, Freud começou a olhar os sonhos como uma espécie de retrovisor. “Os estímulos que surgem durante o sono são os conhecidos ‘restos diurnos’ psíquicos”, escreve Freud. E complementa: “o sonho continua a ser a realização de um desejo, não importa de que maneira a expressão dessa realização de desejo seja determinada pelo material correntemente ativo”.


Ao constatar que os sonhos, realmente, dizem muitas coisas, instigado a entrar nas profundezas oníricas, Freud notou que esse era o caminho para a base do iceberg, o inconsciente. Com os relatos oníricos de seus pacientes, foi possível reconstituir os traumas e os desejos que estavam encobertos por narrativas, a princípio, triviais.


“O que para seus antecessores parecia um labirinto confuso sem saída e sem objetivo, é a Via Régia, a avenida principal que liga a vida inconsciente à consciente. O sonho é o intermediário entre o mundo dos nossos sentimentos recônditos e aqueles submetidos à nossa razão: graças a ele podemos saber muita coisa que nos recusamos a saber no estado de vigília”, observou o escritor austríaco Stefan Zweig.


A partir de então, a crença do sonho como ato revelador do destino volta a fazer sentido. Agora fala sobre o inconsciente, que determina em grande parte os passos – muitas vezes circulares – das pessoas.


De premonição para percepção

Após a revolução que a teoria freudiana trouxe, o sonho passou de premonição – vaticínio de um destino futuro próximo virtualizado – à percepção, que lança a luz às pedras na estrada já percorrida: os restos diurnos, os traumas e os desejos. O sonho continua a dizer alguma coisa.


À época da elaboração das teorias, o próprio Freud apontava para o momento em que a ciência conseguiria investigar a validade de suas descobertas. O que foi um motivo para os antifreudianos acusarem as teorias como “não-científicas”, por tacharem que elas não eram testáveis. Mas com o avançar dos resultados empíricos e dos testados, diversos argumentos antifreudianos perderam fôlego.


Um desses achados empíricos foi realizado pelo neurologista Mark Solms, ao fazer o passo contrário para investigar a capacidade de sonhar durante os estágios do sono – o que alguns cientistas já rejeitavam por destinarem os sonhos apenas como uma “alucinação” do estágio REM. Solms buscou estudar e examinar os relatos de pessoas com lesões cerebrais. Em muitos casos, mesmo quando foram acordados durante o sono REM, os participantes se mostraram incapazes de relatar pensamentos e imagens. Então, o pesquisador chegou a uma conclusão: o sonho não está estritamente ligado ao estado REM.


“Já não é mais possível, por exemplo, trivializar o significado rico e intrigante dos sonhos como inútil subproduto do sono REM. Tampouco é possível seguir aceitando que o sonho represente um encadeamento aleatório de imagens”, comenta Sidarta Ribeiro. E completa: “A evidência aponta para um encadeamento imagético organizado pelo sistema dopaminérgico de recompensa e punição, um processo capaz de ensaiar, valorar e selecionar comportamentos adaptativos sem, no entanto, submeter o corpo a riscos, pois tudo é simulado no ambiente seguro e inofensivo da própria mente”.


Ribeiro ainda revela que “o sonho é um construto fisiológico, uma trajetória específica de ativações mnemônicas orientada firmemente pela bússola do desejo, mas nem sempre capaz de gerar um encadeamento narrativo vigoroso, emocionante ou belo. Cada sonho é um ensaio em si mesmo”.


“Os estímulos que surgem durante o sono são os conhecidos ‘restos diurnos’ psíquicos” - Sigmund Freud

Outro postulado de Freud, sobre os “restos diurnos”, demorou 90 anos para receber a sustentação empírica. O psiquiatra americano Jonathan Winson e o neurocientista grego Constantine Pavlides publicam em 1989 um experimento com resultado revelador. O teste em laboratório feito em ratos mostrou que os neurônios mais ativados durante a vigília também eram os mais ativados durante o sono. Ou seja, o que estava sendo reverberado durante o sono era o que foi percebido com a mente desperta, “os restos diurnos”.


O sonho criou o mundo

O sono e o sonho individual reverberaram em mudanças e marcas coletivas na sociedade. Foi o sono profundo que equilibrou as nossas emoções para vivermos em grupos. O sonho edificou civilizações numa mesma direção, na crença após a morte em que floresceram as religiões, e também foi ponto de partida para a edificação de monumentos que perduram ao passar dos milênios, como as pirâmides e os zigurates.


A criatividade humana que transformou pedras em monumentos também é resultado do salto cognitivo decorrente do sono de nossos ancestrais. Percebemos isso ao lembrarmos que o que aprendemos em vigília, organizamos na memória durante o sono NREM e esse conjunto de informações aleatórias ganha a tônica de criatividade no sono REM, com suas as conexões mais inusitadas.


Além dos exemplos construídos pela coletividade, também podemos vislumbrar outros, mais individuais. Um desses grandes feitos ocorreu após um sonho em 17 de fevereiro de 1869. O físico-químico russo Dmitri Mendeléiev buscava há meses classificar e ordenar os elementos químicos presentes na natureza. Escreveu cada nome em cartões em separado e tentou, de inúmeras maneiras, arranjá-los segundo a classificação de cada elemento. Após várias horas de tentativas, não conseguiu. Exausto, o químico adormeceu sobre as cartas. Foi neste momento que um sonho mudou a história da química. Durante o sonho, Mendeléiev conseguiu visualizar todos os elementos organizados perfeitamente, posicionados pelo número atômico. A partir desse acontecimento, foi criada a tabela periódica.


Se considerarmos que os sonhos às vezes trazem elementos tão díspares entre si, dignos de construírem um Frankenstein, não notaríamos a ironia. Foi numa noite de verão em 1816 que Mary Shelley, com apenas 18 anos, teve a visão onírica que se transformaria no célebre romance Frankenstein.

Um dos maiores clássicos dos Beatles também tem influência onírica. Após acordar de um sonho inspirador, o beatle Paul McCartney estava com uma melodia na cabeça. Sentou-se ao piano e ficou surpreendido com a sequência de notas. “Não, eu nunca escrevi assim antes”, pensou. Desconfiado da autoria, perguntou às pessoas do meio musical se conheciam a melodia. Ainda ninguém conhecia o que mais tarde se tornaria a canção Yesterday.

“A partir desse QI emocional melhorado pelo sono REM emergiu uma forma nova e muito mais sofisticada de socioecologia hominídea através de vastas coletividades, algo que permitiu a criação de comunidades de seres humanos grandes, emocionalmente sagazes, estáveis, muito interligados e intensamente sociais” - Matthew Walker

Das muitas referências ao mistério dos sonhos mencionadas pelos grandes gênios da humanidade, há uma especial do século XVII: “Somos da mesma matéria/ Da qual são feitos os sonhos”, escreveu William Shakespeare na peça A Tempestade.


Atualmente, o verbo sonhar deixa o seu protagonismo do mundo onírico para compartilhar significado no mundo publicitário – em que, ironicamente, se comprova que sonho é desejo; agora, desejo de consumo.


Seguindo o pensamento de Shakespeare, de qual matéria, então, seríamos feitos no século XXI?


Essa matéria foi embasada nos livros O oráculo da noite, de Sidarta Ribeiro, e Por que nós dormirmos, de Matthew Walker. Caso queira se aprofundar no mundo do sono e dos sonhos, indicamos essas obras.


Doze sugestões para um sono saudável*

1 – A hora de dormir. Mantenha um horário de sono. Vá deitar e acorde sempre na mesma hora todos os dias. Se você puder seguir apenas um conselho destas doze sugestões, siga este.

2 – Exercícios físicos. Praticar exercícios físicos é excelente, mas não faça isso muito tarde no dia. Tente se exercitar por pelo menos meia hora na maioria dos dias da semana, porém não mais tarde do que duas ou três horas antes de se deitar.

3 - Evite a cafeína e a nicotina. Seus efeitos podem levar até oito horas para serem eliminados por completo. Portanto, uma xícara de café no fim da tarde pode dificultar o início do sono à noite. O mesmo serve para a nicotina, que é estimulante.

4 - Evite ingerir bebidas alcoólicas antes de se deitar. Beber antes de dormir pode até ajudá-lo a relaxar, mas o consumo intensivo o priva do sono REM, mantendo-o nos estágios mais leves de sono.

5 - Evite consumir muita comida ou líquido tarde da noite. Lanches leves e evitar excesso de líquido antes de dormir é a dica para não ter indigestão, nem ter que levantar para ir ao banheiro.

6 - Se possível, evite remédios que adiem ou perturbem o sono. Se você tem dificuldade para dormir, converse com seu médico ou farmacêutico a fim de verificar se algum remédio que está tomando pode estar contribuindo para a insônia.

7 - Não tire sonecas após às três da tarde. Elas podem ajudar a compensar o sono perdido, porém, quando tiradas no fim da tarde, tornam mais difícil adormecer à noite.

8 - Relaxe antes de ir se deitar. Aposte em atividades relaxantes antes de ir dormir, como ler ou ouvir uma música tranquila. Faça disso parte do seu ritual da hora de dormir.

9 - Tome um banho quente antes de ir se deitar. A queda na temperatura do corpo após sair do chuveiro pode ajudá-lo a se sentir sonolento e o banho pode ajudá-lo a relaxar e a se acalmar.

10 - Mantenha o quarto escuro, fresco e livre de aparelhos eletrônicos. Livre-se de qualquer coisa no cômodo que possa distraí-lo do sono, como ruídos, luzes intensas, cama desconfortável ou temperatura elevada. Dorme-se melhor quando a temperatura do quarto é mantida mais para fria.

11 - Procure ter uma exposição correta à luz solar. A luz do dia é essencial para regular o padrão de sono diário. Procure ficar exposto à luz natural por pelo menos meia hora por dia.

12 - Não fique deitado na cama acordado. Se você ainda estiver acordado após permanecer na cama por mais de vinte minutos ou se estiver começando a se sentir ansioso ou preocupado, levante-se e faça algo relaxante até se sentir sonolento.


*Extraídas do livro Por que Dormimos, de Matthew Walker.

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